sexta-feira, 11 de abril de 2008

5 de Abril, ronda do FCP tri-campeão!


Mais uma noite fria nas ruas do Porto, mas esta era especial, e ao sê-lo, aquecia o coração de muitos.
Sabíamos que ia ser uma ronda diferente e especial, porque neste sábado, o Futebol Clube do Porto, quase de certeza se iria sagrar tri campeão nacional. Isto envolvia não só a dificuldade relativa ao centro de dia da Legião da Boa Vontade se localizar perto das antas, como também à dificuldade que teríamos em passar a carrinha pelo meio do Porto num dia em que era o "salve-se quem puder" a estacionar os carros!

Bem, encontràmo-nos no centro de dia, cada um a estacionar os carros onde conseguia, e começamos a fazer os kits de comida, com as frutas pão e bolos. Depois dos kits preparados, carregamos as panelas enormes de sopa, os kits, a água, os cobertores, roupa, calçado, sabonetes, preservativos e o que mais havia para levar.

Uma equipa de oito elementos, que trabalhando em linha de montagem, pareciam formiguinhas, em quarenta minutos tínhamos tudo preparado.
Estando tudo pronto e carregado, pusemos os nossos coletes amarelos de voluntários e em circulo e de mãos dadas rezamos o Pai Nosso para que tivéssemos uma boa ronda.

Começamos por volta das 10 e foi um trinta e um para conseguir-mos passar em certas ruas. Pelo centro do Porto era quem mais apitava e gritava pelo campeão. Era um, depois dois e até que se chegou aos seis golos....
Até algumas das pessoas que habitualmente se juntava nos locais em que costumamos parar, tinham ido para o meio da confusão, festejar, trabalhar ou pedir.

Mais uma vez cada um tinha a sua tarefa. O Joaquim voltou a ser o motorista e guia, a Silvia a secretária e a que entregava o material de higiene, como champôs, gel de banho, lâminas de barbear, pentes e escovas de dentes. A Ana, a dona Maria do Céu e a Marisa ia distribuindo a sopa, a água e os kits. Eu mais uma vez fiquei na roupa desta vez com a minha mãe que depois de me ouvir contar todas aquelas histórias,que infelizmente são a realidade, ficou com vontade de conhecer e ajudar.

À medida que a noite passava ia-mos deixando a sopa e os kits aos sem abrigo e à população mais carenciada. Ao início da noite pelo calor que se tinha feito sentir durante a semana, e pelos ânimos quentes, só pediam t-shirts e camisas frescas. À medida que a noite ia passando o frio começou apertar e começaram a pedir as camisolas mais quentes e grossas, casacos e blusões.
Na rua existem muito mais homens que mulheres e por isso as sacas enormes de roupa de homem, que vinham carregadas até ao cimo, vinham vazias, enquanto que as de mulher que vinham igualmente cheias traziam ainda muita coisa.
Para o fim da noite começa a dar uma dor de alma, porque pessoas cheias de frio nos pedem meias e roupa quente, e apesar de racionar-mos e tentar-mos equilibrar bem o que damos, no fim já quase nada há para distribuir.

Demos todos os kits de comida e esvaziamos as panelas da sopa, só parámos quando a carrinha estava vazia de comida!

Por qualquer rua se via pelo menos um sem abrigo a dormir sem condições de higiene, com apenas a roupa do corpo, um cobertor e um cartão ou um jornal.
Ao inicio da noite ainda estão acordados a tentar adormecer com o barulho da cidade, que no sábado estava especialmente ruidosa. Mas para o fim da noite já temos que os acordar para lhes oferecer alguma coisa que os alimente e os aquece no meio de tanta solidão e esquecimento.
Alguns passam a semana à espera da nossa visita, como por exemplo o sr Manel (nome fictício), o primeiro que visitámos e que se costuma abrigar-se por baixo do viaduto da Areosa. Ria-se, fazia cara de mau a meter-se com o Joaquim, comia a sopa com gosto e sofreguidão de quem não come um prato quente há dias, e brincava ao escolher a roupa. Tentava ganhar tempo e aproveitar a nossa companhia, o que se percebia nas suas palavras "já vão?, mas estão com pressa?"...Partiu-me o coração logo ao início da noite, mas engoli em seco, enxuguei a lágrima do canto do olho e seguimos viagem.

A nossa "tia" desta vez estava feliz da vida, é ferranha pelo FCP, e só mostrava a t-shirt do clube. Depois de comer veio pedir-nos a roupa e eu disse que desta vez ía tentar arranjar um soutiã bom para ela, ao que ela me responde "ó amor eu tenho mamas, queres ver, não serve um qualquer!".
Eu já espera disto respondi "não, já me mostrou da outra vez, eu sei, mas mesmo assim vou procurar!". E procurei mas realmente a senhora era avantajada e não havia no saco da roupa interior nada que lhe servisse. Então consegui deixá-la toda sorridente porque ao fim de ver vários casacos e várias camisolas das quais não gostava, arranjei um casaco que adorou. Mandou-me logo beijinhos e sorriu com o seu único dente, agarrou-me na mão e ao ver a aliança "minha linda já és casada?...que rica!". Foi um momento que não vou esquecer!

Uma cena que também em chocou foi um dos homens que apareceu junto à carrinha na Sé, vinha ainda com a agulha pendurada no braço de se drogar. Ao ver a carrinha chegar nem se lembrou de a tirar e apressou-se a vir comer e buscar alguma roupa. Foi um pouco chocante, mas a vida na rua é mesmo assim.

A rapariga que na última ronda estava grávida, contou-nos que tinha abortado espontaneamente na segunda anterior, o que apesar de ser triste por um lado, por outro lado deve ter sido por mão de Deus, para que esta criança não nascesse na rua. Um dos elementos reconheceu uma das raparigas e conversou em pouco com elas. Eram duas amigas em que uma delas tinha engravidado e estava com o namorado também, os três na rua. Eram de boas famílias, famílias com dinheiro e não estavam na rua por necessidade, mas sim por opção. Ninguem percebeu aquela guerra entre pais e filhos, e aqueles de nós que eram pais sentiram um aperto no peito, ao pensar que depois de criar um filho com tanto esforço e carinho podiam perde-lo para a rua... deve ser uma dor enorme!

Por volta das 4 acabámos, pois não tínhamos mais comida e voltámos para o centro de dia para arrumar tudo. Se mais comida houvesse, mais horas andávamos na rua.
Por volta das 4:30 saí com a minha mãe para fazer a viagem de volta para casa, que ainda iria demorar uma meia hora!
Para ela foi a primeira vez e ela vinha ainda com as emoções quentes, com todos aqueles sentimentos novos que a assolavam. Revia cada momento e cada história, contava peripécias e já falava da próxima vez. Assim como eu adorou aquilo.

Foi mais uma noite cheia de sentimentos à flor da pele e de emoções contidas. Mas no fim o que interessa é a sensação que se fica de que se ajudou, de que se deu algo, de que se foi importante para alguém que não tem nada e quase nenhumas razões para sorrir. Apesar da miséria e da pobreza que vimos, foi mais uma noite lindíssima a de 5 de Abril!

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